Texto do fascículo "Sérgio Ricardo" da coleção NOVA HISTÓRIA DA MPB

Editora Abril Cultural, segunda edição, 1978.
Pesquisador(a)/redator(a): Paulo Sérgio M. Machado, Cleonice Lima, Natale Vieira Danelli, Jorge dos Santos Caldeira Neto

 Todo dia de manhã o menino João Mansur Lutfi saía de casa para se transformar em mais um moleque das ruas de Marília, cidade do interior de São Paulo. Não adiantavam os cuidados da mãe, Dona Maria Mansur, preocupada com a eventual "fraqueza" do menino que tivera tifo e bronquite asmática.

 Para João, a cidade onde nascera a 18 de junho de 1932 oferecia todo o universo de brincadeiras que uma criança poderia desejar: futebol, escapadas da escola para brincar no Buracão e o trem. Ver o trem passar, com a velha maria-fumaça resfolegando, era emoção sempre renovada - e que marcaria para sempre a memória de infância.

 Brincar no Buracão, só às escondidas: além de perigoso, diziam que o local era mal-assombrado. Mas de dia o fascínio pela aventura vencia qualquer medo. Afinal, quem fosse bom moleque não podia ter medo. Mesmo quando um garoto da turma morreu soterrado, os meninos da cidade continuaram indo brincar lá - apenas evitavam prudentemente o lugar do desmoronamento.

 Para João, a cidade era dividida em dois bairros: Santo Antônio, onde ficava sua casa, e São Bento, com o colégio e a casa da primeira namorada. Entre os dois bairros, a estrada de ferro, atravessada por João quatro vezes por dia. E, para os moleques, um desafio perigoso, na brincadeira de ver quem atravessava mais próximo ao trem,

 Numa dessas competições, João ficou preso pelo pé. Foram segundos de pânico, a locomotiva crescendo, crescendo. Mas, no último momento, ficou para as rodas de ferro o sapato de um menino assustado.

 Com todos esses atrativos, era muito difícil a concentração nos estudos: João só se esforçava o suficiente para passar de ano - e isso quando dava.

 Mas havia também os estudos de piano, desde os oito anos, no conservatório da cidade: Dona Maria Mansur sonhava muito que os quatro filhos fossem artistas - e o sonho realmente seria satisfeito: Tufi fez o curso completo de violino, Candura seria uma boa pianista, até o casamento, e Dib, o caçula, se transformaria num dos melhores fotógrafos de cinema no Brasil.

 Assim, a família pode ter mais de um artista, já que o pai, Abdala Lutfi, tocador de alaúde, quebrara o instrumento depois que descobriu uma misteriosa coincidência: toda vez que tocava, vinha a notícia da morte de algum familiar lá de sua terra, o Líbano.

 No conservatório, João era obrigado a ficar uma hora trancado, estudando ao piano. Só que, em vez dos monótonos exercícios, ele ficava "tirando" músicas de ouvido, já construindo, escondido, seu mundo musical. Não era o intérprete que estava se formando; já despontavam características musicais que, mais tarde, iam ser confirmadas em suas composições.

 Cidade pequena, pouca concorrência: logo João era a sensação das festinhas, onde executava sempre a malabarística Dança ritual do fogo (Manuel de Falla).

 E de tanto tocar essa peça, ele acabou ficando conhecido como o pianista local. Mas não era só a Dança do fogo que João precisava repetir sempre: quando estava com a namorada, ela o fazia assobiar a noite toda o tango La cumparsita (Mattos Rodriguez) e a rumba Siboney (Ernesto Lecuona).

 - Namorar, que era bom, ela não deixava, não...

COPACABANA, POSTO CINCO

 Antes dos dezesseis anos, João já fazia as primeiras tentativas de composição, "alguma coisa infantil, sem grande significado". Um dia, chegou a fazer uma valsa:
 - Era uma música meio pianística, onde eu tentava colocar toda a técnica que tinha absorvido, alguma coisa meio clássica, meio popular. Só serviu para mostrar uma certa liberdade de criação. Naquela época eu já escrevia música, e eu mesmo escrevi essa valsa.

 Aos dezessete anos, João Lutfi transfere-se de Marília para Santos. Foi trabalhar na ZYH - 3, Rádio Cultura São Vicente, inaugurada no início de 1947 e, na época, propriedade de seu tio Paulo Jorge Mansur. Pretendia continuar os estudos (terminara o ginásio) e aperfeiçoar-se em música.

 Mas o rádio não permitiu nada disso: João trabalhava demais, fazendo de tudo. Escrevia, era locutor, era operador de som, propagandista, discotecário. Casa e comida corriam por conta do tio, que ainda lhe pagava "um ordenado razoável".

 Um dia, João foi à casa de alguns amigos e encontrou um piano. Havia ficado quase um ano sem tocar, e o resultado foi uma decepção:
 - Não saiu nada, foi uma frustração violenta. Senti que estava tudo perdido, todos aqueles anos de estudo.

 Foi procurar então uma boate, em cujo piano passou a treinar de dia, até que surgiu uma oportunidade. Em outra boate, o Recreio Prainha, ele começou a tocar profissionalmente e logo teve uma surpresa: ganhava mais dinheiro tocando piano que trabalhando no rádio. Quando já estava se decidindo pela nova profissão, surge um convite de outro tio. Vai para o Rio de Janeiro, trabalhar de locutor na Rádio Vera Cruz. E voltou a estudar, fazendo o curso científico no Colégio Lafaiette.

 - Mas não voltei ao estudo de música, que ficou aquele mesmo que eu tinha feito em Marília. Eu tinha parado ali, mas desenvolvia uma técnica muito pessoal, mais particular, tentando imitar o estilo dos pianistas da moda, para poder conseguir emprego.

 Até então, as influências que João recebera limitavam-se à música erudita - assimilada durante os estudos e na Rádio Cultura São Vicente - e ao que escutara no rádio durante a infância: Luiz Gonzaga, Orlando Silva e outros cantores da moda.

 - O meu touché no piano era o de um pianista clássico. O que eu tentava compor tinha um sabor mais popular, popularesco mesmo, resultado das influências que eu tinha recebido na infância, misturadas com o clássico. Não havia uma ponte, que seria a influência urbana - no caso, o jazz da época.

 De fato, João nunca se preocupara muito com o jazz. E percebeu que, para imitar os pianistas da época, deveria acompanhar a tendência do momento, isto é, tocar como os pianistas de jazz americanos. O primeiro emprego no Rio foi numa boate de Copacabana, no posto 5, onde costumavam aparecer dois nomes ainda desconhecidos do grande público: Johnny Alf e Tom Jobim. Este estava saindo para trabalhar como arranjador, e João ficou em seu lugar.

 - Naquela boate se reuniam muitas pessoas ligadas a esse tipo de música da qual o Tom, de certa forma, era o líder na época. Porque ele e o Johnny Alf foram os primeiros a importar, digamos assim, essa cultura. Isso eu digo sem nenhuma pichação - era o negócio vanguardista da época. E foi o que deu à bossa nova toda uma formação jazzística: uma informação jazzística.

 Como houvesse grande procura de pianistas para boate (foi um dos períodos mais intensos da noite carioca), João Lutfi logo percebeu que aquela seria sua profissão. A família viera para o Rio e estava encontrando dificuldade para adaptar-se. De repente, João viu-se com a responsabilidade da casa - ele, que até aí tivera que se preocupar apenas com a própria manutenção.

 Mas o salário era bom - cerca de 700 cruzeiros por noite -, e assim ele pode, mesmo sustentando a família, comprar um piano.

 Seguiram-se então oito anos de intensa atividade profissional, que o obrigou a largar o curso científico. João viajava para São Paulo, voltava para o Rio, ia para Santos - sempre tocando nas principais boates da época. Só a muito custo conseguiu conciliar o trabalho em boate com dois anos de estudos na Escola Nacional de Música, seguidos por mais dois anos de harmonia e contraponto com professor particular.

 - Nunca consegui concluir nenhum dos dois cursos, mas adquiri boa base para a minha composição - lembra ele.

 Compunha "modestamente, sem muita pretensão", e não tinha coragem para mostrar o que fazia. Quando já tinha um número razoável de músicas, resolveu cantar, acompanhando-se ao piano. Era a época de cantores românticos - como Lúcio Alves e Dick Farney - e logo João Lutfi passou a ser, junto com Tito Madi, um dos cantores de boate mais cotados na época.

 Uma noite, o compositor Nazareno de Brito ouviu o pianista-cantor e convidou-o para gravar na RGE. Saiu um 78 rotações, onde João ainda não cantava suas composições mas lançava-se como cantor profissional, o disco fazendo sucesso no Rio, em São Paulo e até no norte. Logo veio o segundo 78, onde João já conseguiu encaixar uma música sua - Cafezinho.

 E o outro lado ainda continuava pertencendo a Nazareno de Brito.
 Mas não foi só Nazareno que ouviu João: Maysa soube daquele cantor-compositor (na época ainda não era comum o autor cantar as próprias músicas, sistema que ganharia força a partir da bossa nova), localizou a boate e foi conhecê-lo. Resolveu gravar uma das músicas - Buquê de Isabel -, que saiu num de seus primeiros Lps.

 Enquanto tudo isso ia acontecendo, João já fazia suas primeiras incursões na televisão. Começou em São Paulo, indo acompanhar, na TV Tupi, um amigo que tocava harmônica de boca. No monitor, o diretor Theófilo de Barros reparou que aquele pianista "fotografava" bem. Propôs então um teste. João passou e foi contratado como ator para a Tupi.

 Mas se João era um nome comum demais, Lutfi era difícil de guardar. Naquele momento, estava nascendo da boca de Theófilo de barros o cantor, compositor e ator Sérgio Ricardo. Já na primeira telenovela, o desempenho do novo ator foi tão bom que a estrutura do enredo precisou ser mudada: as cartas das fãs transformaram-no em personagem principal.

 Daí por diante Sérgio Ricardo dividiria suas atividades entre a música e a televisão: Grande Teatro Tupi, no Rio; TV de vanguarda, em São Paulo; Balada, na TV Continental do Rio. Foi neste programa que alguns novos compositores vieram procurá-lo:

 - Eu sabia por alto que havia um movimento musical nascendo. Então eles vieram me dizer que eu estava dentro do movimento. Quis saber por que, e disseram: "É que suas músicas encaixam".

 De sucesso, mesmo, Sérgio só tinha o Buquê de Isabel. Mas havia as músicas que ele cantava em boate e as que de vez em quando apresentava na televisão e ninguém queria gravar "porque achavam modernas demais". Sérgio já conhecia João Gilberto, e assim acabou participando da bossa nova desde o início.

 - Discutia-se a necessidade de se reformular os valores da música popular. O que existia na época era na maioria muito ruim, e João Gilberto achava que era necessário a gente renascer e fazer alguma coisa. E inventou a tal batida.

 Quando a bossa nova começou a aparecer em discos, a partir de 1958, Sérgio Ricardo foi um dos primeiros a ter LP gravado já dentro da nova tendência: A bossa romântica de Sérgio Ricardo (Odeon MOFB-3168). Mas não demorou muito para que ele começasse a achar que havia outros caminhos.

 - O que caracterizou a minha dissidência com a bossa nova foi justamente o Zelão. Era o caminho de uma pesquisa mais popular, com o abandono dos valores pequeno-burgueses de Ipanema, de Brasília, aquele negócio de muito sorriso, amor e flor. E foi daí que nasceu o meu primeiro filme, O menino da calça branca, feito com o dinheiro que consegui juntar com a bossa nova.

 Foi um dinheiro proveniente não só do disco, mas conseguido também graças à repercussão da bossa nova - shows, viagens, apresentações na televisão.

 Assim, além de estar envolvido com a bossa nova, Sérgio Ricardo viu-se de repente incluído no chamado cinema novo. Mostrou o copião a Nélson Pereira dos Santos - para ele, o maior cineasta do Brasil -, e o diretor de Rio, quarenta graus (1954-55) pediu para montar o filme. Fotografia de Dib Lutfi, montagem de Nelson Pereira, O menino da calça branca ficou pronto em fins de 1961, valendo a Sérgio Ricardo um convite do Itamarati para representar o Brasil no Festival de Cinema de São Francisco, Estados Unidos, no ano seguinte. Lá o curta-metragem obteve o segundo lugar, "numa concorrência bastante violenta".

 Um dia, em São Francisco, Sérgio recebe um telefonema que será muito importante em sua carreira: é a diplomata Dora Vasconcelos, falando de Nova York, convidando-o para participar de um espetáculo de música brasileira no Carnegie Hall.

 Assim, na famosa noite de 21 de novembro de 1962, junto com Menescal, Lyra, João Gilberto, Tom Jobim, Milton Banana, Sérgio Mendes, Luis Bonfá e muitos outros, Sérgio Ricardo lá estava, numa das mais importantes casas de espetáculo de Nova York, cantando suas composições Zelão, Nosso olhar e Ausência de você.

 - A música, em si, teve uma repercussão nos Estados Unidos. O show causou problema porque estava muito mal organizado, não havia direção de cena, todo mundo tropeçava no microfone - aquele negocio meio brasileiro dentro dos Estados Unidos.

 Depois do espetáculo, o grupo se dispersou; alguns ficaram por lá (João Gilberto, Tom Jobim), fazendo gravações e shows, outros voltaram. Sérgio estava entre os que ficaram (oito meses), só que sua preocupação básica era o cinema: estava preparando um roteiro e já havia encontrado um produtor que comprara O menino da calça branca. Para se manter, cantava em boates - entre elas o Village Vanguard, que ele aponta como experiência importante.

 Surgiu então uma oportunidade de apresentação na Riviera Francesa, num show de quinze dias. Sérgio combinou com o produtor ir até a Riviera e, antes de retornar aos Estados Unidos, passar pelo Brasil para fazer algumas tomadas de cena.

 Só que, nesse interim, o tal produtor americano sumiu, deixando para Sérgio Ricardo as dívidas com laboratório, equipe técnica, etc. O jeito foi terminar o filme no Brasil mesmo, e assim acabou nascendo, em 1963, o longa-metragem Esse mundo é meu, também fotografado por Dib e montado por Ruy Guerra.

 Enquanto terminava o filme, Sérgio ia compondo com Glauber Rocha a trilha sonora de Deus e o Diabo na terra do sol. Glauber, diretor do filme, trouxe algumas fitas com gravações de cegos cantadores nordestinos e os dois começaram a trabalhar:

 - Dei as letras - nas quais usei muitos versos autênticos do povo - e Sérgio começou a compor. Tinha seus vícios de "arranjos"; discutimos que o negócio tinha de ser "puro" Sérgio ouviu péssimas gravações do cego Zé e do seu primo Pedro: pegou e matutou o tom. Cortamos certos versos, fizemos outros; Sérgio deu uns palpites nas letras e eu, mau cantador, dei palpites na música. E ensaiamos pra valer na hora da gravação. Transformei Sérgio em ator - gritei, ele ficou nervoso, deixou os preconceitos e soltou a voz e os dedos no violão. Depois de vários dias e noites, a banda sonora estava gravada.

 Estas palavras de Glauber, que aparecem na contracapa do LP Deus e o Diabo na terra do sol (Forma FM-3), dão bem a idéia da seriedade com que a obra foi atacada. E, ainda em 63, Sérgio Ricardo gravou mais um LP: Um senhor talento, que saiu pela Elenco (ME-7).

 Surge então um convite do governo brasileiro para participar dos festivais de cinema do Líbano e de Gênova, com Esse mundo é meu. Foi primeiro ao Líbano, cujo governo, durante o festival, convida-o para fazer um média-metragem. Sérgio dirigiu então O pássaro da aldeia (Taire in caire):

  - É um semidocumentário, uma coisa entre cinema-verdade e ficção, rodado na aldeia onde meu pai nasceu.

 Em Gênova, Esse mundo é meu encontrou repercussão favorável entre a crítica: o "Cahiers du Cinema", publicação francesa especializada, dedicou-lhe duas páginas. No total, a excursão durou oito meses - três no Líbano, cinco na Itália.

 De volta ao Brasil, em maio de 1965, Sérgio Ricardo estabelece-se durante quatro meses em São Paulo. Prepara o show Esse mundo é meu, junto com o parceiro Chico de Assis (autor do roteiro e diretor).

 Nesse musical, apareciam também o violonista Toquinho - era praticamente seu lançamento - e Manini ao atabaque. O show estreou em julho, no Teatro de Arena, e ficou até setembro.

 A seguir ele volta para o Rio e começa a preparar o roteiro de mais um filme, que de início se chamaria Oratório; depois passou a ser Mutirão, romance da feira de Piancó e finalmente O espantalho. O filme seria rodado em Pernambuco, para onde Sérgio partiu após trabalhar com Hélio Bloch no roteiro. Lá, ao fazer pela primeira vez pesquisa folclórica "in loco", Sérgio resolve transformar O espantalho num musical mais coerente com a realidade brasileira. O material já estava quase todo pronto quando a produção do filme se desfez. Mas Sérgio não desistiu, e retomaria a idéia posteriormente.

 Por essa época, fez a primeira experiência como orquestrador, ao compor a trilha sonora de Terra em transe:
 - O Glauber não queria outra pessoa para orquestrar. Então eu me atirei na orquestração e fiz um negócio sinfônico. Foi muito boa essa minha experiência, eu mesmo escrevi a partitura.

 Outra experiência semelhante, e também da mesma época, foram as músicas da peça O coronel de Macambira, de Joaquim Cardoso. Duas dessas músicas seriam depois gravadas em 1967, no LP Philips A grande música de Sérgio Ricardo (R 765012 L): Abertura e Bichos da noite.

 No auge da época dos festivais de música, Sérgio Ricardo chegou a participar de alguns. Primeiro foi o Festival Fluminense, onde obteve o segundo lugar a música Romana. Depois, veio o célebre episódio de Beto Bom de Bola, inscrita no II Festival de Música Popular, da TV Record de São Paulo:
 

"Homem não chora
Por fim de glória:
Dá seu recado enquanto durar a história.

Como bate batucada,
Beto bate bola.
Beto é o bom da molecada
E vai fazer escola.
Tira de letra a pelada
Com a bola de meia.
Disse adeus à namorada:
A lua é bola cheia.
A cigana viu azar
E Beto não deu bola,
Aceitou a proteção
Do primeiro cartola.
Nas manchetes do jornal
Bebeto entrou de sola.
Extra!

É, é, é, ou não é?
Bebeto é bom de bola.

E foi pra Copa
Buscar a glória.
E fez feliz a nação
No maior lance da história.

Atenção: Beto com a bola,
Avança o furacão.
Zero a zero no placar,
É grande a confusão!
Vai levando a Leonor,
Rompendo a marcação,
Driblou dois e agora invade
A zona do agrião.
Leva um chute na canela,
Vai parar no chão,
Se levanta ainda com a bola,
Domina o balão,
Capengando dribla o beque.
Que petardo!... Pimba... Gooolll!
E foi beijar o véu da noiva!brasil campeão.

É, é, é, ou não é?
Brasil bicampeão.

E foi-se a Copa,
E foi-se a glória,
E a nação esqueceu
Do maior craque da história.

Quando bate nostalgia,
Bate noite escura,
Mãos no bolso e cabeça baixa,
Sem procura,
Beto vai chutando pedra,
Cheio de amargura,
Num terreno tão baldio
Quanto a vida é dura,
Onde outrora foi seu campo,
De uma aurora pura,
Chão batido, chão descalço mas sem desventura,
Contusão, esquecimento.
Glória não perdura.
Mas se por um lado
O bem se acaba,
O mal também tem cura.

É, é, é, ou não?
O mal também tem cura"

 A esses versos bem construídos mas apoiados por melodia difícil, o público reagiu com violenta vaia, quase impedindod que a música fosse cantada até o fim. Depois, na final, o episódio repetiu-se com maior intensidade. Diante disso, Sérgio Ricardo explodiu: quebrou o violão e atirou-o à platéia. foi desclassificado.

 Após essa experiência desagradável, houve ainda Luandaluar, na Bienal do Samba; Girassol, no Festival da TV Excelsior de São Paulo; Canto do amor armado, classificado entre as dez finalistas do Festival Internacional da Canção, e, finalmente, Dia da graça, quinto lugar no festival realizado em 68 na TV Record.

 Depois disso, desistiu de festivais. Em janeiro de 1968, ele está novamente em São Paulo, fazendo outro show com Chico de Assis, no Teatro de Arena: Sérgio Ricardo e a praça do povo.
 - A direção era do Augusto Boal, com entrevistas em televisão em circuito interno. Eu me apresentava sozinho, cantando muitas músicas.

 Já na época dos festivais, Sérgio queria voltar para o cinema. Mas faltava, como sempre, o dinheiro para que a música fosse deixada de lado.
 - Enfim, com um pouquinho de luta, consegui uma situação favorável para fazer Juliana.

 As filmagens de Juliana do amor perdido começaram em 1968 e foram até 1970. Nesse período, Sérgio ainda conseguiu musicar o Auto da compadecida, peça de Ariano Suassuna levada ao cinema em 1969 sob a direção de George Jonas. Trabalhou o roteiro de Juliana junto com Roberto Santos e escolheu Piracicaba e Guarujá (SP) como locações. A primeira apresentação do filme, com fotografia em cores de seu irmão Dib Lutfi, aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nesse ano, o filme ainda foi mandado para Berlim, onde representou o Brasil na Mostra Informativa da cidade.

 Terminado o filme, inicia-se mais um processo de retorno à música, em 1971:
 - Cada vez que eu saio e retomo a música, preciso de um tempo de readaptação empresarial, para retomar o esquema, para apresentar o trabalho.

 Conversação de paz, um show ambulante de aspectos nostálgicos e humorísticos, apresentado principalmente em escolas, marcou sua volta à música. Na primeira parte do espetáculo o cantor Sérgio Ricardo interpretava o compositor Sérgio Ricardo; na segunda, o instrumentista Sérgio Ricardo acompanhava ao violão as cenas do Menino da calça branca, do cineasta Sérgio Ricardo  (como nos tempos do filme mudo).

 A medida que o show corre as universidades do país, Sérgio vai descobrindo um  público que compreende bem sua obra: os estudantes.
 - Não posso mais me fechar em teatros, onde o público tradicional é refratário à experiência de participação.

 Nesse ano mesmo voltou ao disco com Arrebentação , um trabalho em que se destacava Théo de barros, autor dos arranjos de inspiração popular, bem ao gosto de Sérgio. Nas letras, uma variada gama de temas po;íticos: Conversação de paz ("É, porque Hiroxima não foi sem querer./ Conversação, conversação, conversação de paz"), Labirinto ("Com receptores de imagens informando a vida externa/ E alto-falantes estereofônicos pelos quais ecoam as vozes dos oráculos do nosso tempo"), ou Bezerro de ouro ("Os habitantes da terra,/ Tão descuidados pescadores,/ Se afogaram no dinheiro/ Sem se aperceber"). Gravado para a pequena e quase desconhecida etiqueta Equipe, o disco é hoje uma raridade. Mais uma vez, o cantor repetiu suas queixas contra a falta de divulgação, no país, dos produtos artísticos de conteúdo social.

 Sucesso um pouco maior ele conheceu dois anos depois, com o lançamento de outro LP, dessa vez pela Continental. Sérgio Ricardo apresentava velhos trabalhos como Antônio das Mortes, e uma série de músicas novas, todas de inspiração nordestina. O Nordeste o estava marcando tanto que ele canta Sina de Lampião ("Oi, diz lá o que ele tem na mão:/ Se mulher, papo-amarelo/ Ou a sina de Lampião") como um verdadeiro repentista. Por todas as faixas aparecem sons da região, como rabecas, tocadas à moda dos cantadores ou pios de pássaros. A nota dissonante desse trabalho ficou com Canto americano, com letra em espanhol: "Mi canto escolas de samba americano./ Escolas de samba un grito, un vuelo de pajaro./ Es vuelo blanco bajo el cielo./ Mi cielo es americano,/ Por donde vuela blanca esperanza:/ Esperanza blanca de todo el pueblo". No ano anterior, essa letra fora escolhida como a melhor do festival de Atenas.

 Novo movimento pendular: depois de dois anos de música,  Sérgio já se sentia em condições de realizar um projeto cinematográfico que vinha preparando desde o tempo em que fizera a música para Deus e o Diabo na terra do sol. Nessa altura tinha alguma experiência como cineasta: quatro filmes escritos e dirigidos por ele mesmo, e mais inúmeras trilhas sonoras. Sentia que era chegada a hora de tocar seu grande projeto, provisoriamente abandonado alguns anos antes: "rapsódia nordestina, musical trágico ou ópera rural", que ele mesmo depois consideraria sua melhor obra, tanto musical como cinematográfica. Nascia A noito do espantalho, cujas filmagens terminaram em 1974.

 Sérgio fez quase tudo nesse filme. A direção e a trilha sonora são inteiramente suas, o roteiro ele fez com Maurice Capovilla, Jean-Claude Bernardet, Plínio Pacheco e Nílson Barbosa. Para o irmão Dib, deixou a responsabilidade da fotografia. Plínio Pacheco foi uma figura muito importante na realização do filme. Sérgio foi conhecê-lo em Pernambuco, ocupadíssimo com a construção de Nova Jerusalém, um imenso palco ao ar livre, em Fazenda Nova. O cineasta-compositor sentia-se especialmente atraído pelas muralhas greco-romanas da cidade, que dariam um contraste todo especial com a árida paisagem de caatinga ao seu redor. De início, Plínio que presidia a Sociedade Teatral Fazenda Nova, recusou a permissão para as filmagens. Mas foi só ver o roteiro para que a negativa se transformasse em entusiastico apoio: no fim das contas ele colaborou no roteiro e terminou por se responsabilizar pela produção do filme, contribuindo com homens e material.

 Os anos de trabalho e esperança que Sérgio jogou na obra foram recompensados. A carreira de títulos de A noite do espantalho é impressionante: prêmio de qualidade do Instituto Nacional do Cinema; Coruja de Ouro para a fotografia de Dib e para a trilha sonora de Sérgio; melhor filme, melhor fotografia, melhor direção e melhor interpretação masculina (Emanuel Cavalcanti) no I Festival de Cinema Brasileiro de Belém, em 1974; um dos quinze melhores filmes do ano, por indicação da Academia de Cinema de Hollywood; e, finalmente, A noite do espantalho foi apresentado na Quinzena dos Realizadores do festival de Cannes e no Festival de Cinema de Nova York, onde o prêmio é justamente a escolha para exibição.

 Com o público, o sucesso não seria o mesmo. Mais uma vez Sérgio iria encontrar pela frente os velhos problemas de distribuição: uma guerra pelo mercado entre as distribuidoras particulares e a Embrafilme, distribuidora de sua película, iria impedir que o filme chegasse normalmente ao público, além de lhe custar desaprovação da crítica ligada aos grandes interesses empresariais.

 Nem por isso ele se deu por vencido. Aproveitando-se do lançamento de um disco seu, onde estava registrada a trilha sonora do filme - LP A noite do espantalho, da Continental, gravado em 1974 e lançado conjuntamente com o filme - , Sérgio montou um espetáculo em três partes: na primeira, cantava as músicas do filme; a segunda era preenchida pela apresentação da película; e a terceira marcava a volta de um costume quase esquecido desde 1968, o do debate com o autor.

 Qual o Corisco de Antônio das Mores, Sérgio não se entrega aos interesses dos poderosos das artes: "de parabelo na mão", defende até o fim a posição dos criadores, em qualquer ramo de atividade artística. Foi um dos sócios-fundadores e dos principais articuladores da SOMBRÁS, fundada em 1975 para defender os interesses dos músicos perante as sociedades arrecadadoras. A luta não era só no cinema.

 Em meio a tanta briga, houve um momento de paz em 1976, quando o produtor Aloysio de Oliveira o convidou para gravar na RCA, para a série Música Popular Brasileira Espetacular. A grande afetividade que unia cantor e produtor acabou resultando em Participação, um disco destoante na produção de Sérgio Ricardo, exatamente por causa do clima em que foi feito.

 Rufo Herrera, um compositor argentino de formação erudita e pretensões populares, iria trazê-lo de volta ao campo de batalha da produção musical, com uma idéia definida: montar um musical onde as fronteiras entre o popular e o erudito desaparecessem. Nascia o show Ponto de Partida, que circulou pelas universidades do país. Em Curitiba, o espetáculo foi assistido pelo dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, que, entusiasmado, convidou Sérgio para que, juntos, o tranformassem numa peça teatral.
 - A gente conversava, conversava, e não acontecia nada. A peça já estava discutida mas nada fora escrito. Eu estava ficando agoniado. Até que o Guarnieri sentou e escreveu a peça inteira numa tacada só. Aí, ficou texto dele e música minha.

 Depois de ter trabalhado algum tempo como ator em Ponto de partida, em 1977 Sérgio estreou em mais uma gravadora, a Marcus Pereira, com um compacto duplo no qual cantava as músicas da peça: Menino pássaro,  Vidas rasas e Prece (as três com Guarnieri), além de Ponto de partida e Miguel Vasca.

 Tantos anos de luta não chegaram sequer a lhe abalar o ânimo: seu Corisco não se entrega a tenente nem a capitão. Mas há momentos em que Sérgio fica perplexo. Por exemplo, quando percebe que muitos, ao invés de falarem de sua carreira, lembram apenas um distante festival ou a cínica manchete de um jornal sensacionalista, no dia seguinte: "Violada no auditório".

 Sérgio acha muito estranho que as pessoas entendam por que ele quebrou o violão, mas não por que Zelão chorou nem como Isabel do buquê se libertou. E lembra de um verso de Calabouço: "Olha o vazio nas almas".
 


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