Pergunta - Todo cineasta brasileiro tem uma obra mais ou menos bissexta. Mas no seu caso, entre Esse mundo é meu e Juliana do amor perdido passaram-se seis anos. E mais que isso para a realização de A Noite do Espantalho. Não é demais, mesmo para o Brasil?
Sérgio Ricardo - O que acontece é que eu vivo de
duas profissões: cineasta e músico. Na verdade, o cinema
tem sido pra mim mais uma satisfação pessoal de criação.
E a música sempre me toma muito tempo. Quando a maré em música
está boa, é difícil largar a música pra fazer
cinema. Tudo isso aconteceu entre Esse mundo é meu e Juliana.
Nos seis anos entre um filme e outro eu estive na Europa, depois fiz
um filme para o governo sírio, um média-metragem.
Quando voltei ao Brasil, a situação musical, que era
a que eu tinha de pegar imediatamente, tinha mudado inteiramente. Isso
foi em fins de 1964. O próprio Opinião foi um dos acontecimentos
que me fizeram voltar mais depressa.
Eu vim pra me integrar num movimento decorrente dessas transformações.
Acontece que a coisa degringolou de tal maneira que a coisa no meio musical
ficou difícil na área.
Depois vieram os festivais, aquela confusão toda, e eu sempre
querendo voltar pro cinema, mas não conseguindo levantar economicamente
uma possibilidade.
Até que consegui uma situação favorável
pra fazer Juliana. Como no Brasil não existem, infelizmente, condições
de infra-estrutura para manter um trabalho como o meu, que se divide, que
se bifurca em duas partes, é impraticável se segurar na continuidade
dos dois trabalhos.
Eu, por exemplo, faço um cinema e uma música que não
são as coisas mais consumíveis deste planeta e, evidentemente,
não atraem investidores. Se existe o sucesso, os empresários
aparecem. Se o trabalho é sério e tem uma pretensão
maior que apenas o consumo e o sucesso, então encontra uma série
de barreiras. Isso é um assunto bastante conhecido dentro do nosso
processo cultural. Porque o povo esqueceu sua cultura e seria necessário
reeducar o povo a aceitar sua própria cultura e eliminar os sanguessugas
do processo que são as multinacionais. Estas tentam injetar no povo
uma obrigação de consumo que não lhe cai bem na garganta
e dali a pouco vira um vício difícil de ser arrancado.
Esse costume forma uma muralha na sua frente quase que intransponível
e quem está do lado de cá da muralha e tenta se comunicar
com o lado de lá inventa formas mais primitivas de luta. Entre essas
formas primitivas de luta, essa de ter de se levar seis anos entre um filme
e outro. Mas, no caso, não dá certo. Tem de se esperar pra
ver se é distribuido, lutar pra ver se dá pra vencer. Enquanto
isso, o dinheiro acaba e você precisa se sutentar: automaticamente,
tenho de voltar à música. Não como quem recorre a
uma solução econômica, mas simplesmente pelo fato de
que na música dependo apenas do meu violão e da minha voz.
Posso sair por aí, fazendo meus shows e ganhando meu sustento.
Quer dizer, entre um filme e outro fica uma sobra muito grande de espaço
que eu só posso preencher com o trabalho mais imediato, de resposta
mais fácil, que não leva tanto tempo de espera.
Esse filme que você fez na Síria, como é?
O pássaro da aldeia é um média-metragem que eu
rodei na aldeia em que meu pai nasceu, e onde, hoje em dia, só existem
velhos, mulheres e crianças. Os jovens saem da aldeia e emigram.
O filme é sobre um lenhador que já não cabe dentro
da aldeia, pois sua ambição é maior do que o que ele
poderia fazer lá. E a grande preocupação dele é
a grande preocupação árabe: o rompimento com aqueles
velhos valores místicos.
O filme mostra o processo interior desse lenhador, tentando vencer
os problemas que ele traz dentro de si, esses condicionamentos religiosos
e familiares. E ele consegue realmente romper com tudo isso e deixar a
aldeia.
Dos seus filmes, o primeiro, Menino da calça branca, é de longe o menos conhecido...
É, esse filme eu fiz logo no começo da bossa nova, com um dinheiro ganho com música, em 1960-61. Inicialmente eu pensei em fazer o filme em 16 milimetros, achava que ia acabar sendo brincadeira. Mas, naquela época, eu já me interessava muito por cinema, assistia a muitos filmes, vivia estudando cinema em livros, e senti que poderia de cara tentar algo mais profissional. A técnica de cinema aprendi como produtor na TV - TV Tupi de São Paulo (como ator em 1952, mais ou menos), depois TV Rio (como ator em 1954, mais ou menos), na TV Continental do Rio (onde comecei a produzir), e depois na TV Tupi do Rio, também como produtor. Na época, todo mundo considerou O menino uma loucura total, uma perda de dinheiro absoluta, porque o curta-metragem não tinha nenhuma possibilidade no mercado. Por coincidência, quando eu estava jogando esse dinheiro fora, estava nascendo o cinema novo, com o Couro do gato, de Joaquim Pedro, com Cinco vezes favela e os filmes que Glauber ia trazendo da Bahia. O menino foi escolhido pelo Itamarati para representar o Brasil no Festival de São Francisco.
Em Esse mundo é meu você fez a música com o filme terminado ou antes?
Bem, quando o filme terminou, eu estava precisando de um título pra ele. Como não consegui arrumar um título que prestasse para as duas histórias contadas no filme e como um dos personagens cantava Esse mundo é meu, pus o nome da música no filme. Pelo menos, dava uma idéia geral das duas histórias. A música já existia mas não foi por causa dela que o filme foi feito.
Você está satisfeito com Juliana do jeito que saiu?
Não estou satisfeito porque o sistema de promoção
e distribuição não chegou a preencher as minhas expectativas.
Esperava que o filme fosse bem mais cuidado no setor promocional e de distribuição.
Além disso, esse filme serviu como um exercício estético.
Eu fiz esse filme exatamente em 1968, logo após o AI-5, quando já
estava preparado pra fazer A noite do espantalho. Mas, com essa transformação
política, o produtor que estava interessado na Noite do espantalho
preferiu adiar e fazer alguma coisa mais oportuna, devido a um certo perigo
político. Eu estava lidando com dinheiro de outras pessoas e não
poderia colocar ninguém numa situação ruim. Pra não
perder a oportunidade de produzir um filme, tive de deixar de lado o Espantalho
e partir pra uma idéia lírica. Ela funcionaria como um exercício
de movimento de câmara, montagem de diálogos, exercício
de planos - seria uma prova dos 9.
Uma pergunta redundante: você fez as músicas de Juliana antes ou depois do filme pronto?
Antes e depois. São quatro temas centrais e mais toda a música incidental, além de música folclórica, como a sequência da pesca do xaréu.
Uma notícia de jornal diz que a origem
de Juliana é até meio fantasmagórica: um trem que
apita onde não devia apitar, uma coisa assim. Agora, a respeito
do trem, há uma coisa intrigante. Você dá uma atenção
excessiva ao trem.
Por exemplo, como você chegou àquela
cena em que o maquinista bate um martelo nas rodas dos vagões, uma
cena muito longa e que só quem costuma ficar sentado em estações
percebe que a martelada é dada para se saber se uma das rodas não
rachou?
Olha, tem mesmo um lado sentimental nisso. Eu nasci em Marília
e, quando ia pra escola, atravessava a linha de trem. Muitas vezes fiquei
parado na porteira esperando o trem passar. Por isso, acho que o trem teve
na minha infância uma importância muito grande, principalmente
um trem como aquele do filme, um trem de carga, puxado por uma maria-fumaça.
Esse trem tem um fascínio enorme pra mim. Por isso eu tentei
extrair dele não um elemento agressivo, mas um elemento poético.
Como surgiu a idéia de A noite do espantalho?
Logo depois de Deus e o Diabo, quando eu estava apaixonado pela
nova conquista que teria feito, com a ajuda do Glauber: a descoberta de
uma nova cultura brasileira, até então considerada por mim
apenas em baiões. De repente eu veririquei que não era nada
daquilo, que era um mundo não informado, fantástico, muito
importante. E aí me pintou a idéia de fazer um musical com
aquela cultura. Fui fazendo um tema aqui, outro ali. Baseado em informações
que ia obtendo nos lugares, ia absorvendo as coisas, transformando em música
e daí a pouco tinha o filme feito. Uma coisa curiosa é que,
depois de ter feito o primeiro cordel, no Sul, sem conhecer o Nordeste
(pois eu fiz a trilha sonora baseado apenas em fitas de gravação),
fui conhecer os locais.
Ao executar as músicas, ali, naquelas regiões, apareceram
imagens e descobertas da região que vieram ilustrar o filme. Foi
assim que tive contato com aquela cultura, levando já um trabalho
que tinha feito. Vendo a realidade em confronto com aquela outra realidade
que eu tinha feito. E das duas realidades em confronto, misturadas, saiu
A noite do espantalho.
O filme foi exibido normalmente, em circuito comercial?
A noite do espantalho passou no Rio muito bem. O que aconteceu foi que em São Paulo houve uma questão de incompetência de distribuição da Embrafilme, numa época em que ela estava tentando se organizar. Na época, não sei se ainda hoje, existia uma guerra entre as distribuidoras e a Embrafilme. E como A noite do espantalho era financiado pela Embrafilme, tinha de ser distribuido por ela. A crítica paulista, comprometida com essa briga, pichou o filme, de forma que ele foi frustrado no seu lançamento. Em São Paulo o filme só passou no TUCA (Teatro da Universidade Católica). E, como a entrada tinha de ser muito cara (era um show e um filme) e o público era estudantil, não deu pros paulistas assistirem. Já a crítica internacional foi toda favorável ao filme. Na França, todos os jornais e revistas, sem exceção, falaram bem e alguns dos principais do setor do cinema entenderam a fita. O filme ganhou prêmios no Brasil e no exterior.
Você acha que seu trabalho atinge o objetivo artístico que você tinha imaginado?
Eu já exibi A noite do espantalho pro povo e já
verifiquei o que o povo sente. Eu já sei o que o filme tem pra alcançar.
Por exemplo, com Juliana, eu não tenho opinião formada, porque
eu não sei o que é que o público achou realmente do
filme. Pode ser por causa disso que eu não tenho ligação
afetiva com o filme, como não tenho com O pássaro da
aldeia, feito na Síria, porque eu não sei o que as pessoas
acharam do filme. Meu objetivo era atingir, com A noite do espantalho,
o próprio povo que me informou tudo aquilo, não por objetivo,
mas simplesmente por uma questão de coerência de criação.
Se eu fui buscar aquela forma estética baseada no povo e no que
o povo me informou, evidentemente eu me cerquei de amor pela coisa.
Automaticamente, eu deveria fazer aquele filme de volta àquelas
pessoas. E não pra informar outra pessoa que não me dá
coisa nenhuma, a não ser aborrecimento. A classe média só
me dá aborrecimento, me faz comprar televisão, me faz consumir
supermercado, me faz ter apartamento, me proíbe de respirar. Da
classe média eu quero distância. Tanto assim que no meu filme
a classe média é caricaturada como um cordão de bobocas
que andam pelo filme o tempo todo, fazendo poses como faz a classe média.
Existe um bloqueio contra sua obra cinematográfica?
O meu trabalho não vai pras pessoas que deveriam ver porque os veículos de comunicação não permitem. Primeiro porque existe um bloqueio feito pela ignorância cultural brasileira. E existe deliberadamente um bloqueio da máquina de consumo contra meus filmes, porque minha imagem não agrada muito aos homens que comandam os veículos de comunicação. Eu sou realmente uma pessoa bastante difícil de se lidar, realmente não tenho tolerância pra uma série de coisas que vejo acontecendo nas repartições públicas e nos escritórios e nas diretorias dos veículos. Cerceamento de pensamento, e outras milongas mais. Logo, não tenho grandes possibilidades de aceitação.
FreekXou agradece qualquer sugestão, comentário, ou informação
adicional p/ esta página.
Não deixe de nos comunicar qualquer erro.
Entre em contato: mail p/ Freek
Xou e-mail
© .Brasil, 3/1999 (ev).
Hosted by GeoCities.