| |
Na Bibliografia Situacionista eu mencionei que a maioria
das traduções situacionistas são inadequadas. Seria
tedioso demonstrar isso nos mínimos detalhes, mas aqui estão
alguns breves exemplos dos três principais erros: excessivamente
literais, abuso de liberdade, e puro e simples descuido.
Começando pela última, a edição Autonomedia/Rebel
de Viénet Enragés and Situationists é particularmente
malfeita. Contém vários erros lingüísticos elementares
global = total, não global
(p. 78); tout le monde = everyone, não the
whole world (p. 97); etc. Várias ilustrações
tem legendas incorretas Committee for the Maintenance of
Occupations deveria ser Sorbonne assembly (p. 6); 1881
deveria ser 1871 (p. 8); portrait by Riesel deveria
ser portrait of Riesel (p. 33); Beneath the abstract
lives the ephemeral deveria ser Down with the abstract, long
live the ephemeral (p. 75); You want to protect the bureaucrats
future deveria ser You want to safeguard your future bureaucratic
careers (p. 111). Há numerosos nomes próprios (na
p. 72 como Kiel, Kronstadt e Mulelists mal escritos); desajeitados (on
p. 18 The action is yours to take deveria ser Its
your turn to play); confusões (é dado um enterro prematuro
a Debray na p. 78: funeral orations for [should be by]
the stupid Régis Debray); e um descuido generalizado (na nota 2
na p. 16: Despite the S.I.s obvious development of the historical
thought issuing from the method of Marx and Hegel, the press insists
on lumping the situationists with anarchism, as palavras não
estão em itálico). O Apêndice inclui a maioria dos documentos
da edição original, mas não todos eles, e não há nenhuma indicação
das omissões. O mais constrangedor de todos os erros, e é difícil
imaginar como alguém com a mais leve consciência do situacionismo
poderia cometer este deslize, a sinopse da parte de trás refere-se
a SI como radical student group!
Mesmo que esses enganos pareçam secundários, eles se multiplicam.
Eles são reproduzidos toda vez que o texto é copiado ou
reimprimido. Cada um destes textos tem o potencial de desperdiçar
o tempo de milhares de leitores, de confundir sobre o que realmente quer
dizer, não alcançar algum ponto chave ou até mesmo
incidir em uma suposição errônea. Se for um texto
importante, cedo ou tarde outra pessoa vai ter que refaze-lo. Por que
não fazer as coisas direito na primeira vez?
(Talvez eu devesse mencionar que me pediram que conferisse esta tradução.
Eu não respondi porque fui abordado de uma maneira odiosa. Em todo caso,
eu não estou interessado em salvar o trabalho malfeito de outras pessoas
que normalmente significaria refazer tudo do começo ao fim. Os
poucos exemplos nos quais eu concordei em conferir as traduções
dos outros foi quando eu soube que essas traduções tinham
sido feitas de uma forma bem escrupulosa).
As traduções efetuadas pela Chronos Publications são
o mais óbvio exemplo de como uma tradução pode ser
excessivamente literal. O leitor nunca percebe que Debord e Sanguinetti
são escritores muito eloqüentes, e que Debord particularmente
quase sempre é extremamente lúcido. Os tradutores da Chronos
(Michel Prigent e Lucy Forsyth) merecem crédito por se esforçar
por serem precisos ao máximo. Mas depois de começar corretamente
revisando a palavra original por uma palavra que certamente expresse toda
nuança, eles falham em não voltar atrás e tentar
descobrir como uma pessoa articulada diria a mesma coisa em Inglês.
Isso pode requerer a reforma total de uma oração, ao mesmo
tempo em que se leva em conta o contexto, o fluxo de todo parágrafo,
e as diferentes variações e sintaxes das duas linguagens,
prestando bem atenção em todos os falsos cognatos (palavras
que parecem ser a mesma mas que de fato tem significados diferentes).
Literal nem sempre significa precisão.
As traduções desajeitadas de Chronos são tão
óbvias a qualquer orador inglês nativo que raramente precisam
de qualquer demonstração. A tradução de Lucy
Forsyth do último filme de Debord, In girum imus nocte et consumimur
igni (Pelagian Press, 1991), é em geral talvez um pouco melhor
do que suas primeiras colaborações para o Chronos, mas muitas
passagens ainda estão arruinadas pelo mesmo excesso de literalidade:
Oeuvres cinématographiques complètes (Champ Libre pp. 209210, Gallimard pp.
213-214):
Pour justifier aussi peu que ce soit lignominie
complète de ce que cette époque aura écrit ou filmé, il faudrait un jour pouvoir
prétendre quil ny a eu littéralement rien dautre, et par là
même que rien dautre, on ne sait trop pourquoi, nétait possible. Eh bien!
Cette excuse embarrassée, à moi seul, je suffirai à lanéantir par
lexemple.
Versão Forsyth (p. 20):
In order to justify even in the slightest the complete
ignominy of that which this epoch will have written or filmed, one day it will have to be
claimed that there was literally nothing else, and by this token even that
nothing else, one isnt quite sure why, was possible. Oh well! Myself alone, I shall
be the only one to consign this awkward excuse to oblivion, by example.
Versão sugerida:
What this era has written and filmed is so utterly
ignominious that the only way anyone in the future will be able to offer even the
slightest justification for it will be to claim that there was literally no
alternative, that for some obscure reason nothing else was possible. Unfortunately
for those who are reduced to such a lame excuse, my example alone will suffice to demolish
it.
Na primeira sentença Debord está obviamente recorrendo
à ignomínia da literatura e do cinema de toda presente era
(passado e presente tanto quanto sua presumida continuação
no futuro); um desajeitado futuro-perfeito (will have written or
filmed), que é gramaticalmente necessário em Francês
para outorgar o ponto de vista retrospectivo de apologistas futuros, mas
que não é necessário em Inglês. Eh bien
é uma dessas interjeições transitivas que é
melhor omiti-las na tradução; mas que se são traduzidas
deveriam ser por Well, e não por Oh well,
que tem um sentido completamente diferente. Isso funciona como uma condução
sarcástica diante da próxima oração, implica
no sentido de que é algo parecido a Well, unfortunately for
them... Na última sentença Debord não está
dizendo que ele necessariamente será o único exemplo (é
possível que hajam outros), mas mesmo que fosse o único
exemplo, apenas seu exemplo bastará. No outro extremo, as traduções de Donald Nicholson-Smith
estão em um inglês bem fluente, mas às vezes exagera
em suas liberdades:
La Société du Spectacle (thesis #18):
Là où le monde réel se change en simples images, les simples
images deviennent des êtres réels, et les motivations efficientes dun comportement
hypnotique. Le spectacle, comme tendance à faire voir par différentes
médiations spécialisées le monde qui nest plus directement saisissable, trouve
normalement dans la vue le sens humain privilégié qui fut à dautres époques le
toucher; le sens le plus abstrait, et le plus mystifiable, correspond à
labstraction généralisée de la société actuelle. Mais le spectacle nest
pas identifiable au simple regard, même combiné à lécoute. Il est ce qui
échappe à lactivité des hommes, à la reconsidération et à la correction de
leur oeuvre.
Versão Black and Red (1977):
Where the real world changes into simple images, the simple
images become real beings and effective motivations of hypnotic behavior. The spectacle,
as a tendency to make one see the world by means of various specialized
mediations (it can no longer be grasped directly), naturally finds vision to be the
privileged human sense which the sense of touch was for other epochs; the most abstract,
the most mystifiable sense corresponds to the generalized abstraction of present-day
society. But the spectacle is not identifiable with mere gazing, even combined with
hearing. It is that which escapes the activity of men, that which escapes reconsideration
and correction by their work.
Versão Nicholson-Smith (Zone, 1994):
For one to whom the real world becomes real images, mere
images are transformed into real beings tangible figments which are the efficient
motor of trancelike behavior. Since the spectacles job is to cause a world that is
no longer directly perceptible to be seen via different specialized mediations,
it is inevitable that it should elevate the human sense of sight to the special place once
occupied by touch; the most abstract of the senses, and the most easily deceived, sight is
naturally the most readily adaptable to present-day societys generalized
abstraction. This is not to say, however, that the spectacle itself is perceptible to the
naked eye even if that eye is assisted by the ear. The spectacle is by definition
immune from human activity, inaccessible to any projected review or correction.
Versão sugerida [agora parte de minha
nota tradução integral do livro]:
When the real world is transformed into mere images, mere
images become real beings dynamic figments that provide the direct motivations for
a hypnotic behavior. Since the spectacles job is to use various specialized
mediations in order to show us a world that can no longer be directly grasped, it
naturally elevates the sense of sight to the special preeminence once occupied by touch;
the most abstract and easily deceived sense is the most readily adaptable to the
generalized abstraction of present-day society. But the spectacle is not merely a matter
of images, nor even of images plus sounds. It is whatever escapes peoples activity,
whatever eludes their practical reconsideration and correction.
A reforma bastante livre de Nicholson-Smith provê freqüentemente uma
inclinação luminosa no texto de Debord, mas às vezes às custas de obscurecer
a estrutura e o sentido dialético do original. Assim, sua primeira
oração pode ajudar a concretizar o significado em termos de um espectador
em particular, mas pode ao mesmo tempo dar a impressão errônea de que
o espetáculo é apenas uma questão relativa ao estado mental de
vários indivíduos em vez de uma realidade global objetiva. Na última
parte da sentença, eu acho que a adição de “invenções” é uma liberdade
aceitável; mas tais invenções não são necessariamente tangíveis, o problema
é que elas tem vida própria. E efficientes aqui tem um
sentido de efficient cause de Aristóteles direta,
imediata, próxima em vez do sentido habitual da palavra
em inglês. Na segunda sentença, referindo-se a the
spectacles job talvez seja um bom modo de esclarecer o ponto
em questão; mas esse ponto fica confuso quando saisissable
(graspable) tem o sentido de perceptible. As últimas
duas orações tratam do que o espetáculo é (de acordo com Debord,
não “por definição”), não pode ser visto nem ouvido. Na realidade
a maioria dos espetáculos pode ser visto ou obviamente pode ser ouvido;
o ponto é que o espetáculo—o espetáculo no sentido amplo da palavra—não
se limita a isso, mas engloba tudo o que remonta além das nossas
limitações, além de nosso controle, que escapa ou
ilude a atividade humana (immune from não está
correto; e não sei o que a palavra adicionada projected
supostamente significa nesse contexto). Definitivamente esta é uma das passagens mais inseguras de Nicholson-Smith.
Em muitos aspectos a tradução dele representa uma melhoria diante da versão
Black and Red que se encaixa mais intimamente ao original mas
inclui erros vários e obscuridades.
Eu não desejo humilhar estes tradutores em particular, todos eles tiveram
uma considerável dificuldade em disseminar estes valiosos textos.
Não há um único tradutor de escritos situacionistas que não cometeram
erros semelhantes, e muitos fizeram pior. (Em geral, a maioria das versões
on-line é bem mais malfeita que a impressa.) Tradução é uma tarefa notoriamente
difícil e ingrata. Freqüentemente não há nenhum equivalente exato
entre os dois idiomas e o melhor que se pode fazer é tentar escolher o
termo menos inadequado. Eu não reivindico que minhas próprias traduções
são perfeitas, nem estou propondo que refaçam tudo novamente. (Por
enquanto vou indo muito bem com minhas prévias versões da
SI Anthology que coloquei on-line.) Mas acho que a maioria das
traduções situacionistas ainda não atinge a precisão e a lucidez que estes
textos merecem. Um pouco mais de cuidado, camaradas!
KEN KNABB
Março de 1999
Notas da edição em lingua inglesa: Esses textos foram originalmente
escritos no princípio dos anos 90, mas não foram incluídos
em Public Secrets porque eles não pareciam se ajustar
bem dentro do plano global do livro. Eles estão sendo publicados
aqui pela primeira vez.
No copyright.
| |
|