A Grande Arte de Sérgio Ricardo
Sérgio Ricardo, o piano e o violão
 
O uso, a invenção e as propostas estéticas usadas ou preteridas nos arranjos e no uso dos instrumentos apontam, no campo da estética, as próprias concepções políticas e históricas da música popular. A carreira de Sérgio Ricardo, como de qualquer outro artista, seus ideais e sua forma de ver a sociedade e a própria evolução de sua arte, podem ser descritas pela forma como ele toca seu instrumento. Mesmo que pareça difícil ver uma opção política ao se tocar violão com as cordas puxadas ou batidas, esse simples detalhe no toque da mão direita nunca é à toa ou gratuíto e esconde um mundo de significados que se relacionam numa enorme teia, que vai de um dado artístico à uma concepção política de sociedade.
 

Em termos pianísticos, Dançante n. 1 não apresenta um passo no sentido do piano Bossa-Nova, isto é, enxuto, leve, cool, límpido, despido de floreios e notas desnecessárias. Quem vai fazer isso é Johnny Alf e, principalmente, Dick Farney. Com a Bossa-Nova, Jobim radicaliza seu estilo pianístico nesse sentido e “estabelece” o piano Bossa-Nova. Sérgio Ricardo nunca vai abandonar de todo esse estilo “anos 50” de tocar piano (como ainda pode ser notado no lp Depois do amor, gravado logo após sua “adesão” à Bossa-Nova). Com Pernas (típica canção Bossa-Nova, feita em 1959 para o LP A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo) ele vai absorver algo da concisão e dos acordes fechados da Bossa-Nova, e depois - com a canção de protesto - vai incorporar algo da música erudita nacionalista: um piano mais percussivo, com elementos atonais e uma harmonia mais seca. A mesma escola em que se formou Egberto Gismonti, por exemplo. Infelizmente esse “novo” piano só poderá ser ouvido em disco nos anos oitenta: na carreira de Sérgio Ricardo houve um parênteses no seu desenvolvimento como pianista:  durante a Bossa-Nova e depois no desdobramento desse momento, que foi a Canção de Protesto, Sérgio Ricardo se apega ao violão, instrumento da MPB por excelência.

O violão, de instrumento mal visto, “coisa de vagabundo”, acaba por se incorporar na MPB por causa do impacto do fenômeno João Gilberto. Nesse momento o violão é introduzido na cultura das elites como instrumento sofisticado, por um lado, e como algo autenticamente nacional, por outro. A Canção de Protesto, desdobramento da Bossa-Nova, mantém o violão, não mais como símbolo de sofisticação, mas pelo seu lado nacionalista : identificação do instrumento como autêntico, brasileiro; instrumento típico das classes baixas (como de fato era no RJ). Agora o violão será amplamente difundido como símbolo de uma opção por uma música politizada, relacionada as populações pobres e exploradas. Essa mudança do papel do violão, dentro da MPB, será feita pelo próprio Sérgio Ricardo, quando da produção da trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol , em 1965, cinco anos depois de Pernas.

Logo após a explosão de João Gilberto, o violão passa a ser o instrumento predileto da nova geração de compositores e músicos da jovem e urbana Copacabana e Ipanema. Agora possível de incorporar um som sofisticado (possibilidade essa exposta por João Gilberto, tanto na mão esquerda quanto na direita), o próprio objeto violão adquiria um “ar” sofisticado, pelo seu tamanho compacto e praticidade no uso, locomoção etc. (como foi a Roleflex, os “pequenos” aparelhos elétricos etc., na época). Até o design do violão ganha status; o violão acaba por se tornar o instrumento por excelência da música popular. Dessa forma, muitos músicos se viram na contingência de, além de tocar o necessário piano (que permite a experimentação harmônica e o domínio da partitura), aprender violão. Foi o caso de Sérgio Ricardo (e também Egberto Gismonti) que vai a fundo no estudo e na arte do violão. Chegou a ser comparado com Baden Powell pelo jornalista e escritor Carlos Cony. Sua formação “pesada” como pianista erudito facilitou o aprofundamento no mundo do violão.

No seu segundo disco de Bossa-Nova, Um Senhor Talento, de 1963, Sérgio Ricardo já não toca piano e todas as faixas são feitas com violão. Já é evidente seu domínio do instrumento. É evidente também sua transcendência do violão Bossa-Nova, já incorporando "toques" dos gêneros populares, como o berimbau (em A Fábrica) e a percussão, como instrumentos de escola de samba (na introdução de Menino da calça branca e Tristeza morra na Favela). O próprio ritmo tão característico de Bossa-Nova é abandonado em favor de uma percussão mais contundentemente africana em Barravento e Esse Mundo é Meu. O trabalho que Sérgio Ricardo fazia ao violão se antecipa ao trabalho de Baden Powell nos seus afro-sambas. O toque de berimbau imitado pelas cordas aparece em A Fábrica. Assim também nota José Ramos Tinhorão, na sua Pequena História da música popular : “Em pelo menos duas das músicas feitas para Deus e o Diabo na Terra do Sol - A Procura e Antônio das Mortes - o compositor Sérgio Ricardo já incorporava a imitação da batida do berimbau estilizada ao violão por Baden Powell”. Porém Powell não foi além, radicalizando sua linguagem. As experimentações de Powell nunca ultrapassaram os afro-sambas. Já Sérgio Ricardo não. Dominado o violão Bossa-Nova, ele vai criar a sonoridade da Canção de Protesto.

Como foi dito, em Um Senhor Talento, Sérgio Ricardo  ensaia novos passos para o violão popular, incorporando novos sons feitos pelas camadas mais pobres - e por isso mais “rústicas”, como eram chamadas. Essa aproximação leva, por outro lado, ao abandono progressivo de certa sofisticação harmônica da Bossa-Nova. A música “rústica” dos mais pobres não comportava nem os acordes de sexta e nona e nem o toque sutil das cordas puxadas pela mão direita. Esse caminho em direção as formas musicais regionais (vou substituir as palavras folclórico, música das classes baixas etc. por “música regional”, já que efetivamente o que se buscava eram sonoridades regionais, como samba de morro carioca, a moda de viola paulista, o repente pernambucano, entre outras manifestações musicais) de alguma forma se pautava pela proposital oposição ao que se chamava de música universal - que nada mais era que a institucionalização, no corpo social brasileiro, da cultura de massas. Ora, a cultura de massas foi (é) um desdobramento da economia imperialista (hoje globalizada), da democracia capitalista norte-americana. Esse processo foi inevitável, e só seria barrada por força de uma revolução política ou social - o que não aconteceu. Foi esse caráter de lutar contra o inevitável que estigmatizou a Canção de Protesto como anacrônica. Classificar a Canção de Protesto como anacrônica ou retrógrada é o que chamamos, na terminologia histórica, assumir a “história dos vencedores” e desqualificar a “história dos vencidos”.

A mais bem sucedida estilização regional na MPB foi a trilha sonora que Sérgio Ricardo fez para Deus e o Diabo na Terra do Sol , filme de Glauber Rocha. As letras foram concebidas fielmente ao estilo dos repentistas pernambucanos e o violão, tocado de forma violenta e fortemente percussivo, usando poucos acordes e sem dissonância, fizeram dessas músicas verdadeiras cartilhas musicais para o movimento que veio se chamar de Canção de Protesto. Canções como O Sertão Vai Virar Mar e Antônio das Mortes se tornaram paradigma desse genêro. Sérgio Ricardo é imediatamente seguido por Geraldo Vandré (principal nome da Canção de Protesto) e Chico Buarque (em Morte e Vida Severina). Também vai influenciar os Tropicalistas: no violão de Geléia Geral e Tropicalha transparece a “batida” criada por Sérgio Ricardo (As primeiras canções de Gilberto Gil são concebidas dentro do gênero Canção de Protesto, sendo Procissão a mais famosa ). Não deixar notar, porém, que  Geraldo Vandré já buscava esse caminho, como pode ser notada em sua Canção Nordestina, de 1963.
 

Porém é enganoso afirmar que Sérgio Ricardo “simplificou” sua música (nota 31). Esse é um erro muito comum dos pesquisadores que confundem Geraldo Vandré com todos os outros autores da Canção de Protesto. De fato, Geraldo Vandré usava pouco mais de dois acordes nas suas canções - aliás, o uso alternado de dois acordes são “marca registrada” de sua música. A música, assim como o violão de Sérgio Ricardo, se sofisticava a cada ano: basta alguém tentar “tirar de ouvido” coisas como Calabouço, Canção do Espantalho e Ponto de Partida (essa uma verdadeira obra-prima, podendo tranqüilamente figurar entre as dez maiores canções brasileiras, tanto pela sua elaboração harmônica densa - e única - quanto pela letra, diferente, bela e muito pertinente). Por toda déc. de 60 e 70, Sérgio Ricardo vai privilegiar o violão. Ele retorna ao uso mais corrente de piano nos anos 80, quando, infelizmente, quase não grava mais. Porém pode ser ouvido em shows. Retorna em nova forma pianística, utilizando um piano percussivo, árido, com acordes densos, fechados e muitas vezes atonal (que pode ser ouvido na História de João Joana e O Mar). Infelizmente essas gravações não demonstram toda a riqueza e potencial do piano de Sérgio Ricardo, que só pôde, até agora, ser ouvido ao vivo). A esse piano se alterna o piano romântico, com muitos arpejos, para acompanhar suas canções românticas.
 
 
 
 

A Grande Arte de Sérgio Ricardo
 
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