A Grande Arte de Sérgio Ricardo
Afastamento da Mídia e o Novo Regionalismo

 A partir do famoso episódio da quebra do violão em 1967, Sérgio Ricardo começa a ensaiar uma nova fase de sua conturbada carreira: independência dos grandes meios de comunicação. A quebra do violão representou mais que um ato de revolta contra a indústria em que se transformaram os Festivais - um balão de ensaio para a implantação da moderna industria cultural. Representou uma ruptura com esse esquema industrial. A destruição do violão não foi um diálogo com o público ou com a cultura daquele momento. Foi o sinal de desprezo por todo o processo que se constituía naquele momento: não aceitar as regras e romper definitivamente com a nova estrutura.

 Mas foi uma atitude de duas vias: se Sérgio Ricardo demonstrava ser independente da grande industria cultural, esta, por sua vez jogava Sérgio Ricardo no ostracismo. Daquele 1967 em diante, Sérgio Ricardo rarissimamente vai aparecer na mídia (designação que surje no início dos anos 70, agora usada para substituir a terminologia “indústria cultural de massa” que, eufemisticamente, já havia sido substituída por “meios de comunicação de massa”).

 Seu trabalho vai se caracterizar pela independência frente à mídia, por um lado, e pelo caráter alternativo, por outro. Alternativo devido ao espírito totalitário da mídia no país. Apenas 4 ou 5 grupos dominam todo sistema de comunicação, num processo centralizador levado a cabo pelo regime militar. Desta forma, o espaço para veiculação de qualquer produção desvinculada desse restrito grupo, só poderia se dar por canais alternativos. Tal foi o estrangulamento de espaço, que Sérgio Ricardo gravou apenas 3 ou 4 discos desde então, em gravadoras pequenas e produzido por amigos. Apesar de não parar de produzir é pouco lembrado ou sequer citado. Para efeito de Mídia ou popularidade podemos afirmar que sua carreira “acabou” desde o episódio da quebra do violão. Porém, para efeito de atividade artística, podemos afirmar que sua carreira ainda estava para acontecer, sempre numa evolução crescente, inovando e excitando a vida cultural por onde passava, deixando sempre a marca da indignação e da reflexão. Esse desassossego criador de Sérgio Ricardo só foi possível exatamente por estar ele liberto das amarras do sucesso e do grande público. Caso fosse consagrado nos Festivais, provavelmente sua arte ficaria pressa a um determinado padrão Bossa-Nova.

 Após a revolução do Tropicalismo, Sérgio Ricardo radicalizou suas pesquisas para criação de uma nova música popular, que respondesse tanto às novas informações culturais, como a evolução interna da própria MPB, sem perder o caráter social e politizado. O fruto dessas pesquisas vai ser o música de A Noite do Espantalho, criada entre 1969 e 1973. Essa obra apresenta um enorme potencial de possibilidades para a música popular: conseguia sair do folclorísmo conservador que congelava os gêneros populares, recriando essas formas através de uma sofisticada composição camerística, limpida (sem ser simplista ou “folclórico-infantil”), dispensando orquestra e instrumentação habitual - apresenta uma concepção enxuta, concisa, objetiva, tanto da composição como do arranjo; lança mão do atonalismo, da fala cantada e do grito; transcendendo o ritmo popular, explorando sua possibilidades, potencializando o ritmo, retirando seu lado de dança para torná-lo um elemento estrutural da composição; mistura canto, harmonia, ritmo e arranjo de tal forma que um se complementa no outro. Os instrumentos todos (violão, viola, piano) fazem ritmo, harmonia e melodia, revezando-se em todas as funções, quando não fazem as três ao mesmo tempo;o canto assume o lugar do ruído, enquanto a percussão parece querer cumprir o papel da linha melódica; o violão de Sérgio Ricardo, agora muito menos um acompanhante, estilizado, aparece como um protagonista ao lado do canto. Sérgio Ricardo utiliza procedimentos da música erudita, como a quebra da hierarquia melodia-harmonia-ritmo,ao mesmo tempo que busca uma grande concisão da estrutura musical, propostas por Webern (da mesma forma como esses procedimentos foram adotados pelo Free Jazz e fundamentaram o aleatorísmo, e depois o minimalismo, na música ocidental). É uma “ópera do sertão”, provavelmente o primeiro disco conceitual da MPB. Como foi originalmente concebido para o cinema, o lp conta, da primeira a última faixa, a história fantástica de Zé Tulão, um migrante no sertão do nordeste.

 Infelizmente essa obra foi muito pouco divulgada, porém fez escola, sendo responsável pela estilização da linguagem de uma nova geração de músicos, que buscavam criar um som novo, sem perder a estrutura da música de suas regiões de origem que eu chamo de novo-regionalismo (nota 91) . O principal nome dessa geração foi Alceu Valença, que trabalhou com Sérgio Ricardo em a Noite do Espantalho e bebeu na fonte. O caso de Alceu Valença ilustra como Sérgio Ricardo foi importante e influente, porém permaneceu desconhecido.

 Alceu Valença começou fazendo música inspirado diretamente pelos tropicalistas, tentando uma mistura da música regional e o som “universal” - basicamente o pop-rock. Juntamente com Geraldo Azevedo, lançou Geraldo Azevedo e Alceu Valença, esbanjando talento, porém sem clara definição estética. Esse lançamento era algo que experimental, com arranjos de Rogério Duprat. O próprio Alceu Valença não se considerava como profissional. Logo após o lançamento, Sérgio Ricardo convidou-o para trabalhar como ator e participar na trilha sonora dA Noite do Espantalho, juntamente com Geraldo Azevedo. Alceu Valença considera esse momento o ponto de partida de sua carreira. Logo após a gravação de Noite do Espantalho (1973), Alceu Valença grava seu segundo LP, Molhado de Suor, onde incorpora toda a nova estética elaborada por Sérgio Ricardo. A ponto de, hoje, o LP A Noite do Espantalho ser vendido como um disco de Alceu Valença. E não há fã de Alceu que não confunda as músicas de Sérgio Ricardo como de autoria do próprio Alceu Valença. Durante os anos 70, Alceu Valença brilhará como astro da MPB, difundido e fazendo escola do “novo-regionalismo”, linha concebida por Sérgio Ricardo. É claro que a música de Alceu Valença não é uma cópia de Sérgio Ricardo. O que acontece é que Sérgio Ricardo estava na frente, mais uma vez, e criou um determinado modo de se expressar, que toda uma geração buscava e adotou imediatamente. Diria que Sérgio Ricardo fundou um “gênero”.

 Nesta linha ele trabalha seu lp seguinte, Calabouço (1974), que assim como Noite do Espantalho, será um LP cult. Agora ele reafirma sua nova estética desvinculado de um filme, criando canções belíssimas e regravando uma ou outra coisa. Tão fantástico e tão cheio de surpresas criativas e coisas originais quanto seus predecessores A Grande Música de Sérgio Ricardo (1967), Arrebentação (1969), Noite do Espantalho (1973), Calabouço (1974) têm de ser escutado.

A Grande Arte de Sérgio Ricardo
 
<- Introdução
<- O Início e o LP Dançante n. 1
<- Sérgio Ricardo, o Piano e o Violão
<- Zelão e a "Estética do Morro"
<- Sérgio Ricardo e a Bossa Nova
<- Canção de Protesto
<- Sérgio Ricardo e o Tropicalimo 1
<- Sérgio Ricardo e o Tropicalimo 2
Afastamento da Mídia e o Novo Regionalismo
Sérgio Ricardo e o Primeiro Disco Independente
->
Novos Caminhos
->
Retorno à Questão Agrária
->
Militância e Circuito Universitário
->
Sérgio Ricardo, Cineasta
->
O Artista Plástico
->


FreekXou precisa e agradece qualquer sugestão, comentário, e informações p/ suas páginas.
Não deixe de nos comunicar qualquer erro de nossa parte, sua sugestão e seu desejo. Entre em contato: FreekXou e-mail
© 1998
Na rede em 1/99

 página principal do Sérgio Ricardo no Freek Xou
 

 

Hosted by GeoCities.

1