A Grande Arte de Sérgio Ricardo
Sérgio Ricardo e o Tropicalismo 1

 Sérgio Ricardo participou da revolução tropicalista - que teria nascido como proposta na casa de Sérgio Ricardo, em 67, como descreve o jornalista Carlos Calado, em seu livro sobre a história do tropicalismo:

“ (...) Gil teve a idéia de convocar uma reunião de compositores, especialmente aqueles dos quais ele e Caetano sentiam-se mais próximos. Com uma certa dose de ingenuidade, acreditou que poderia convencer os colegas e amigos a aderirem ao projeto de um movimento para renovar a música popular brasileira, para torná-la mais ‘universal’.
O encontro acabou acontecendo no Rio, onde viviam a maioria dos compositores. No dia combinado, na casa de Sérgio Ricardo, estavam presentes Dori Caymmi, Edu Lobo, Sidney Miller, Chico Buarque, Francis Hime e Paulinho da Viola, além de Caetano, Torquato e Capinan. Gil abriu a reunião com uma longa preleção. Para começar deu detalhes de suas experiências musicais em Pernambuco, incluindo a “descoberta” da banda de pífaros de Caruaru. Em seguida, afirmando que considerava os Beatles a manifestação musical mais importante daquela época, Gil falou da necessidade de passar a compreender a música popular como um meio da cultura de massas. E que, numa sociedade dominada pela cultura de massas, a música tinha se transformado em uma mercadoria para um consumo rápido e fácil. Assim, o nacionalismo defensivo da Canção de Protesto, que impregnava também quase toda a produção da MPB daquela época, não teria mais sentido. Estava na hora de todos se unirem para criar um movimento que revigorasse a música brasileira.
 “Caetano falou pouco, mas reforçou as idéias de Gil. (...) As reações variaram de pura incompreensão ao simples desinteresse. Dizendo ter concordado apenas com parte da análise e a proposta de Gil, Sérgio Ricardo achava que realmente todos deviam ‘radicalizar’ mais: em sua opinião, a melhor maneira de atingir ‘as massas’ seria organizando shows para operários, nas portas das fábricas.”

 Como já afirmei, o violão tocado por Gilberto Gil em Geléia Geral é inspirado no violão de Deus e o Diabo na Terra do Sol, da mesma forma como Sérgio Ricardo incorporou a guitarra no seu repertório (Aleluia). A diferença estética fundamental entre a síntese de Sérgio Ricardo e a dos Tropicalistas, além da questão da militância política, foi na incorporação da música pop norte-americana: Sérgio Ricardo nunca aceitou enquadrar suas músicas pelo iê-iê-iê, enquanto que a universalização da MPB através da estética pop era fundamental a Caetano Veloso.

Em 1968, Sérgio Ricardo  montou o espetáculo A Praça é do Povo, criado e interpretado por ele, com direção de Augusto Boal, e arranjos de...Rogério Duprat - o maestro do tropicalismo! Para se ter uma idéia de como o “Tropicalismo” de Sérgio Ricardo era mais conseqüente que o “Tropicalismo” dos Tropicalistas, reproduzo parte do artigo de Izidoro Blinkstein, prof. da Universidade de SP, sobre esse espetáculo montado no teatro Arena:
 

 “Sérgio Ricardo na Praça do Povo, uma obra aberta e  conseqüente"
 
 Algo de muito significativo aconteceu no Teatro de Arena, no inicio deste ano, pois, pela primeira vez, alguém resolveu “por em ordem” suas idéias sobre a arte e a cultura brasileira em geral, utilizando praticamente todos os meios de comunicação modernos.

O grupo de alunos da USP considera lamentável que a crítica, de um modo geral, parecendo desconhecer a própria teoria da comunicação, não se esforçasse por acentuar o aspecto quase singular desse “show”, que se propõe a discutir problemas de arte e cultura brasileira, utilizando-se de todos os recursos audiovisuais modernos. É de fato lamentável, se considerarmos o poder da opinião dos críticos sobre o público.

Nessa época de inversão completa de valores de alienação, de irresponsabilidade, de inconseqüência, é obrigatório ouvir Sérgio Ricardo. Porque seu “show”é, antes de tudo, desmistificação. Propusemo-nos então a reunir algumas idéias que foram lançadas e discutidas por ocasião do debate que o “grupo da USP”, realizou no Arena.

Sérgio Ricardo na Praça do Povo é, conforme diz o roteirista Augusto Boal, uma discussão ilustrada por todos os meios áudio-visuais de comunicação.

Qual o tema geral dessa discussão?

Diríamos que seria o destino da música popular brasileira, a comunicação do artista com o público, a mensagem a enviar, a linguagem a ser utilizada, etc.

Mas o espetáculo vai além.

Painel de nosso tempo, Sérgio Ricardo na Praça do Povo, nasce da crise e da perplexidade de um mundo que não se comunica.

Sérgio Ricardo é o drama da comunicação no mundo contemporâneo.

(...) Fica claro que a compreensão da obra de arte não é fácil. Porque fácil não é ir além da simples informação (...). Captamos mais as palavras, as imagens da fotografia, da televisão, do cinema - e mal retemos o significado destas comunicações (...) .

O aparelho de televisão nas salas de casas de família impõe-se como a própria mensagem, e o público não se preocupa em captar o significado do que diz um ator ou um político, ao ser entrevistado. E, no entanto, esse mesmo político, “ao vivo”, jamais convenceria alguém. O mesmo acontece com o cinema. E o que dizer da música? As palavras são decoradas e cantadas maquinalmente sem que se dê a devida atenção ao significado. Parece que o meio de comunicação bem manipulado poderá fazer com que o público consumidor tudo aceite.

A crise do significado é o gérmen de Sérgio Ricardo na Praça do Povo. O público não capta, de um modo geral, o conteúdo da mensagem.

O roteirista, o cenógrafo, o músico e Sérgio Ricardo mostram-se perplexos diante desse fato: há uma porção de coisas a dizer, há uma mensagem a transmitir e que não é entendida.

Eis aí a direção geral do espetáculo: partindo da incomunicabilidade do compositor de música popular, chega-se a um problema mais amplo e mais profundo: a transformação dos veículos de comunicação (TV, cinema, guitarra elétrica, a moda, etc.) em mitos. Daí a imposição de estereótipos, daí a massificação, daí o embuste no mundo contemporâneo. A contrapartida desse progresso geral da mistificação está numa atitude constante do Sérgio Ricardo destruir o prestígio do (...) veículo de comunicação, destruir o mito para que se ouça, para que se veja, se entenda enfim o significado da mensagem.

E para isso deve-se preparar o espectador: além da discussão com o público, das músicas, das projeções, dos “tapes” de TV, que começa num fato particular (música popular brasileira, ou quebra do violão) e vai até uma estrutura geral que explique o fato. E como há uma constante preocupação com o significado, o espetáculo, “abre-se” ao público, que pode dar a sua medida de recepção de mensagem e até mesmo sugerir modificação na estruturação, na montagem do mesmo. E uma autêntica “obra aberta”, passível de recepção diferente e de modificação.

A construção do espetáculo é estrutural: cada proposição desencadeia um novo problema.

O público tem de estar sempre alerta, pois nunca um ato de Sérgio Ricardo é praticado inconseqüentemente. Há sempre uma relação com uma estrutura mais ampla. E isso explica sua dinâmica.

Sérgio Ricardo propõe ao público, logo de início, a necessidade de discutir sobre uma porção de fatos e coisas que nos cercam e proclama a necessidade de renovar.

Depois de levar o público inteiro a cantar o refrão “vou renovar”, Sérgio Ricardo quebra a entusiasmada seqüência rítmica com a frase seca: “não vai renovar nada”. Havia aí a melhor demonstração de que o público se prendera mais ao aspecto físico  da mensagem do que ao significado propriamente. Aí está a atitude chave do “show”.

O primeiro problema colocado por Sérgio Ricardo explica-se dentro do próprio esquema de comunicação. Diz ele que a Música Popular Brasileira se encontra num impasse. Falar de seca ou de miséria a um retirante ou favelado é quase inútil: ou a linguagem da música não lhe é acessível (pois rebuscada) ou, quando esta linguagem é mais simples, ele não que ouvir falar de seu drama. Por outro lado, fazer esse tipo de música para a classe média é meio “mondo cane”, pois falar de miséria “para quem tem a barriga mais ou menos forrada nada resolve”. Em outras palavras: o receptor não chega a decodificar o significado da mensagem. Fica com o que então? Com o ritmo, com a parte física da mensagem. Assim, é capaz de cantar comovidamente o “Zelão”, embora não participe do seu significado. E a experiência é feita. O público inteiro é levado invariavelmente a cantar “Todo o morro entendeu quando o Zelão chorou...”. Mas depois Sérgio acrescenta: “Estão vendo só? Bastou animá-los um pouco para que todos cantassem e nem sequer pensassem no significado da mensagem”. O público facilmente é levado a não participar do conceito e prende-se só aos veículos de comunicação.

(...) Como vivemos a crise do significado - pela manipulação de significante em todos os meios de comunicação - foram então aproveitados, para o espetáculo, todos os recursos áudio-visuais de comunicação: TV, filmes, “slides”, a guitarra elétrica, etc. Mas aqui eles são desmistificados em benefício do significado da mensagem. Assim, a utilização de “tapes”, projetados em aparelhos de TV, colocados em três pontos diferentes do recinto do Teatro de Arena (em vez do local habitual, a sala de casa de família), quebra a estrutura desse tipo de comunicação. O aparelho de TV numa casa impõe-se como veículo e como mensagem, anulando praticamente a necessidade de um significado. Em programas de entrevista, por exemplo, os organizadores conseguem impingir - e com êxito - banalidades (corte de cabelo, moda etc.), que não teriam importância alguma se não fossem captadas pela televisão ou dentro da estrutura de um programa de TV.

Mas a coisa muda no Arena.

O veículo é retirado de sua estrutura normal e perde a força comunicativa. Passa a ser objeto de análise e crítica. A mensagem por ele transmitida, adquire conotações especiais.

Assim, chega a ser divertida, e até ridícula, a presença de “tapes”, de consagrados ídolos da música popular “enlatada”( iê-iê-iê). Sem a proteção da estrutura da TV, esse ídolo fica praticamente entregue à própria sorte. Suas frases, sem conteúdo, provocam riso na platéia do Arena. Um deles, inquirido por Sérgio Ricardo a respeito da realidade nacional, diz que não é nem capitalista nem comunista mas ele mesmo, i. é, Carlos Imperial. E Sérgio Ricardo completa jocosamente: “Vai ver que é imperialista”. A observação do iê-iê-iê feita num programa de entrevistas teria arrancado aplausos frenéticos do público.

Por outro lado, Mário Schemberg ou Maurice Capovilla são ouvidos “normalmente” e, apesar de trazidos pela TV ao arena, conseguem superar o prestígio do veículo, impondo sua mensagem. O veículo é desmistificado e é Capovilla que lança o tema do espetáculo: “Fazer música para que, para quem e com que linguagem?”

Sérgio Ricardo considera o caso de Procissão, de Gilberto Gil. Para quem se destina essa composição? Não será evidentemente para aquelas pessoas que “se arrastam que nem cobra pelo chão”. Essas, infelizmente, não são conscientes da causa de sua miséria e só pensam na “salvação” em termos sobrenaturais. O conteúdo da música destina-se então a um público que não participa nem da miséria, apesar de estar “comovidamente” consciente de sua existência.

O que fazer então?

Sérgio Ricardo traça um breve histórico da música popular brasileira. Houve um tempo em que uma aparência de prosperidade (1958-60: Brasília, o advento da industria automobilística, a vitória do futebol brasileiro na Suécia)levou o artista a cantar a natureza e o amor. Sérgio Ricardo interpreta Mar Azul, envolto em aconchegante e sensual penumbra. Mas Mar Azul aqui está num contexto histórico-crítico e se o espectador chega a se embevecer com a voz suave, com a iluminação velada ou com o balanço das ondas, não deve deixar, por isso, de sentir a limitação do tema, diante de um problema muito mais amplo. Pernas têm têm conotações conotações inesperadas através de uma projeção ritmada de “slides”, onde se alteram focos de esplêndidos pares de pernas e de grotescas criaturas, que ironizam os nossos anseios sexuais (estas tiradas de revistas pornográficas). (...) Com esse novo meio de comunicação (projeção ritmada de “slides”, ilustrando a música), o espetáculo desencadeia conotações que criam um segundo nível de significado. O tema musical original - glorificação do sexo em Copacabana, passa a significar algo além: a aparente prosperidade glorificava o instinto, numa completa alienação da realidade.

Mas o artista toma consciência disto. Volta-se para a favela. E diz que “é preciso encontrar uma nova princesa Isabel”. Aí o tema musical é ilustrado por um filme de cuta-metragem, em que um grupo de sambistas abre os braços para o alto mas... estão cercados por arranha-céus numa rua de cidade grande. Essa combinação de atos sêmicos (música, palavras e curta-metragem) cria um nível conotativo e Princesa Isabel, no espetáculo, adquire nova significação: a gente de favela ainda continua sofrendo.

Se a favela continua, o artista comprometido com a realidade, lamente a miséria e reivindica. Mas a classe média (único receptor de suas músicas) está “amarrada”, sem saber seu próprio destino. Diante do impasse surgem “soluções” que , na verdade são anestésicos. Lembra Sérgio Ricardo que para Chico Buarque a solução é o Realejo, para Vinícius é o ...amor ( e Sérgio Ricardo acompanha a frase como um lento e sensual gole de uísque) (nota 71) .

Tudo é pois anestésico para a classe média. Aliás para todas as classes, Sérgio Ricardo lembra didaticamente que:
 - Mazzaropi está para o povo; assim como Chico Buarque está para a classe média; assim como Ibrahin Sued está para a society.

Vê-se aqui o aspecto aberto do próprio espetáculo. Esse quadro pode ser ampliado por exemplos do próprio espectador.

Assim, Coração de Luto (ou Churrasco de Mãe) de Teixerinha está para o camponês, assim como Que vá Tudo Para o Inferno de Roberto Carlos está para a classe média do tijolinho, do caderninho, do benzinho, do Guarujá, assim como Tropicália está para a elite, Por que não? Por que não? Por que não? Estruturalmente, essas músicas nada mudam. É apenas o culto da forma.

Seria preciso que o ritmo e o instrumento fossem só veículo e nunca a mensagem. E que a “colagem” não deslumbrasse tanto a platéia ávida de novidades. Em vez de anestesiar, seria preciso perturbar, sacudir o espectador.

Assim, Sérgio Ricardo utiliza a guitarra elétrica (a arma do iê-iê-iê) e lamenta a morte de Che Guevara, “a morte que não se deu”. Há sons cortantes de guitarra, a iluminação é agitada e acompanhada pela projeção de um “slide” onde se ajuntam rostos perplexos e tristes. No final, um negativo de Guevara - superposto a uma cruz, visualiza a desmistificação da morte do guerrilheiro. Esse momento provocou acirrados debates: muita gente não perdoou a Sérgio Ricardo a lamentação (quase festiva)da morte de Che. Mas ainda aí há que considerar o aspecto da comunicação. Na verdade, Guevara estava cercado de mistério. De repente, a ANSA, a UPI, a imprensa, de um modo geral, resolveram “matá-lo”. E os jornais exibiram, em primeira página, a agonia de Che. Sérgio Ricardo gritando que “Che Guevara não morreu”, e exibindo o negativo da foto clássica de Guevarra, inverte a trama da imprensa e desmistifica a morte. No final, vários atos sênicos - a voz de Sérgio Ricardo, a guitarra, o vermelho agitado da iluminação, os rostos perplexos do povo, a cruz - se entrecruzam, criando conotações das quais nenhum espectador escapa (mesmo que resista ao conteúdo da música).

Voltam então os “tapes”, volta o aparelho de TV, a mesma que imolara Sérgio Ricardo. Desta vez, as figuras se comprimem no vídeo para analisar e inquirir a respeito da “quebra do violão” (1967). Cantores, artistas de cinema e teatro, políticos - e até mesmo Denner - julgam o fato. E senten-se, de novo, o apego (...) aos índices de comunicação. Assim, a grande maioria deixo-se fascinar pelo fato em si, mas foi incapaz de colocá-lo numa estrutura mais ampla e entender-lhe o significado. As opiniões, de um modo geral, indicam como só se percebeu o significante (a quebra do violão). Outros foram um pouquinho além: “Sérgio Ricardo foi maleducado, foi isso e mais aquilo” ou “teria feito o mesmo” etc. Já Geraldo Vandré enxergava um outro ato: comunicar ao público a “coisificação” do homem na sociedade capitalista, a massificação, mas... o público massificado reagiu. Caetano Veloso também vai além mais nivela tudo em mais uma “colagem”: “Salve Sérgio Ricardo, salve o violão quebrado, salve o cachê que a record me paga, salve- se quem puder”.

Sérgio Ricardo retorna a origem do incidente: Beto Bom de Bola. A música foi rejeitada. Porque teria sido mal cantada. Porque longa. Porque o ritmo não agradou.

Sérgio Ricardo, didaticamente, leva o público a entender a “coisificação” de Beto. Liberta-o do veículo TV. Visualiza-o em uma projeção ritmada de “slides” - que acompanha a trajetória do jogador Garrincha, sua ascensão e queda - superposta a um filme de curta metragem, em que se vê um jogador simples, errando por campos de várzea, ser saudado e homenageado por amigos e fãs. Há um emprego estrutural de “slide” e “filme”. O jogador de várzea não foi “coisificado” e “dá seu recado enquanto durar sua história”. Há um aspecto dinâmico em sua vida, o qual é traduzido por um recurso de comunicação - -o filme. Beto-Guarrincha, por outro lado, começa diblando o mundo inteiro e termina, os olhos arregalados, apavorado diante da decadência. É uma situação estática montada por fatos da imprensa ou clássicas tomadas de cena de TV; é a vida padronizada, paradigmática. Os “slides” são autênticos paradigmas sem dinâmica e ilustram estruturalmente a ascensão e queda de Beto-Guarrincha. A escolha de Guarrincha não é fortuita. Outros já intuíram nesse jogador a própria tragédia brasileira.

A “coisificação” do jogador nos “slides” completa a música, quando Sérgio Ricardo canta:
 1- E foi prá Copa, buscar a glória...
 2- E foi-se a Copa e foi-se a Glória
 Aqui o homem sujeito passa a objeto enquanto Copa-objeto passa a sujeito. Beto-Garrincha é imolado, vítima que é do mito criado por “cartolas” e pela imprensa, que cultuam nomes e não seres humanos.

(...) E se vivemos envolvidos em mistificações, diz Sérgio Ricardo, é bom conhecer o verdadeiro sentido das coisas, seu significado. É bom saber quem são os verdadeiros “bichos da noite”. A partir daí somos convocados a pensar num problema mais amplo: a mistificação e a massificação escondem-nos a guerra. O cantor abre um jornal e começa a folheá-lo, sentado em confortável poltrona e entre um e outro gole de uísque, o projetor vai lançando “slides”, em que se alteram canhões, soldados, bombas, aviões, cadáveres, destroços, napalm, canhões; e de novo, bombas e aviões. Esses signos visuais ilustram a música Bichos da Noite. A projeção começa com figuras folclóricas - que assustam crianças - e terminam com canhões - que assustam os homens. ë um momento de perplexidade. O ritmo da música é alucinante, os versos (...) trazem conotações de medo. O ritmo da projeção e a ordem dos “slides” conotam o processo contínuo e inexorável da guerra. E a conotação maior significaria que nada existe isolado e cada fato encontra sua explicação, quando colocada numa estrutura geral.

Assim a quebra do violão, não é um acontecimento estéril e inconseqüente, mas um reflexo da luta contra o embuste e a massificaçào. A classe média reflete fatos isolados (pela TV, por exemplo) e dificilmente capta a estrutura geral. Tem medo mas não sabe de quê, e no entanto há “bichos da noite” que nos rondam. Mas Sérgio Ricardo diz não. E é na luta contra a mistificação, quebrando violões, que ele acaba por encontrar- se a si mesmo ao encontrar o elo entre nordeste brasileiro e o viatnam. É a conotação que advém da justaposição entre os “slides” em que uma mulher viatnamita chora um cadáver e os versos de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”: “Meu filho, tua mãe morreu, não foi da morte de Deus, foi  de briga no sertão, dos tiros que jagunço deu”. Sérgio Ricardo diz não, e “se entrega Corrisco, eu não me entrego não” é justaposto ao “slide” em que um viatcong, prisioneiro, é arrastado por “marines”.

No final, o espetáculo só conta com recurso visual: “slide”. É que quase só conhecemos a guerra por fatos da imprensa. São paradigmas estáticos, que nos trazem um segundo nível de significado: o espetáculo surgiu de duas crises, a nacional (do subdesenvolvimento) e a internacional (da guerra imperialista), ambas intimamente relacionadas.

Mas, se tudo é tão claro e nem sempre é possível fazer tanta coisa, podemos pelo menos “dar nosso recado enquanto durar nossa história”. Gritar, reivindicar algo.

Desaparecem a guitarra, a TV, o uísque, a iluminação. O cantor, de braços abertos, liberto de todos os veículos de comunicação proclama que, pelo menos, a “praça é do povo!”. Simultaneamente projetados sobre o cantor fotos de grandes aglomerações populares, em estádios de futebol, em que Sérgio Ricardo se mescla numa fusão lírica. A obra não se fecha, afirmando na não solução seu caráter dinâmico, ‘aberto’”.
 

 (Publicado na Revista Brasileira de História, v.8 n.15, pp.193-203,ed. USP, SP, 1988).
 

Esse artigo tem a cara da época que foi escrito, 1968, inclusive a linguagem. O viés interpretativo de Izidoro Blikstein é baseado nas teorias linguísticas de Umberto Eco, especificamente as expostas no livro A Obra Aberta, muito popular entre os estudantes da época - principalmente os estudantes de comunicação, que acabaram estigmatizados, tornando-se “figuras-clichês” dos anos 60.

 Talvez hoje, em que toda a sociedade está mergulhada na indústria cultural de origem norte-americana, soe estranho esse tipo de discussão. Porém a implantação dessa indústria dava-se naquele momento histórico, e essas discussões se equilibravam entre: defender uma “nacionalidade” ou aceitar e tentar, de uma forma ou outra, absorver essa nova indústria, assim como foi absorvida a indústria automobilística.

A Grande Arte de Sérgio Ricardo
 
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Sérgio Ricardo e o Tropicalimo 1
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